A 22 de Fevereiro de 2002 o líder da União Nacional para a
Independência Total de Angola (UNITA), Jonas Savimbi, foi morto por forças
militares do governo e, em breve, as imagens televisivas do seu cadáver eram
transmitidas em todo o mundo.
O esforço militar do governo para derrotar a UNITA reclamara a
sua vítima mais preciosa. Tendo resistido a crescentes pedidos domésticos e
internacionais para novas conversações com a UNITA, o governo encontrava-se
numa encruzilhada, aparentemente numa posição forte, em que poderia escolher se
queria tentar forçar a UNITA a uma rendição total ou iniciar algum tipo de
conversações de paz. A UNITA, fracturada e hesitante, enfrentava escolhas ainda
mais difíceis. Este artigo analisa como as partes responderam à oportunidade oferecida
para terminarem a guerra, e interroga a forma como as decisões que conduziram à
assinatura do Memorando de Luena em 4 de Abril podem ter moldado o futuro de
Angola.
Passos para as
conversações
Três dias após a morte de Savimbi, enquanto as operações
militares prosseguiam em Angola, o Presidente Dos Santos esteve em Lisboa para
discutir a situação com o governo português. Aí, ele fez uma declaração pública
indicando que o próximo passo seria um cessar-fogo, antes de viajar para
Washington, onde se encontraria com o Presidente George W. Bush e outros altos
funcionários dos EUA e, depois, com Ibrahim Gambari, Sub-Secretário da ONU para
os Assuntos Africanos. A 2 de Março, o governo confirmou que contactaria a
UNITA para preparar o terreno para um cessar-fogo.
As informações iniciais, a seguir à morte de Savimbi, sugeriram
que a UNITA estava determinada a continuar a combater, mas a sensação de
derrota iminente aprofundou-se com a notícia da morte do Vice-Presidente
António Dembo. Surgiram rumores de que ele fora morto por companheiros da
UNITA, porque, não sendo ele ovimbundu, seria uma escolha inaceitável para
líder, mas outras informações afirmavam que ela era diabético e tinha perdido
os medicamentos. O Secretário-Geral da UNITA, General Paulo Lukamba
"Gato", alegadamente da linha dura, tornou-se no líder de facto, no
seu papel de 'coordenador' da recém-formada Comissão de Gestão.
Seguiram-se contactos discretos entre os partidos beligerantes,
e deu-se um avanço público a 13 de Março, quando o governo declarou uma
cessação unilateral das movimentações militares ofensivas e apresentou um
'plano de paz' (ver Textos de base e acordos). Este plano exigia a resolução
dos assuntos militares pendentes em conformidade com os Acordos de Bicesse e o
Protocolo de Lusaka, a desmilitarização e reintegração da UNITA na vida
política, e uma amnistia de todos os crimes cometidos no âmbito do conflito
armado. Havia também o compromisso em trabalhar, durante o processo, com toda a
sociedade, especialmente as igrejas, partidos políticos, e grupos da sociedade
civil. O plano foi considerado surpreendente, mas foi, em geral, bem recebido.
A Assembleia Nacional não foi consultada nem envolvida. O Representante do
Secretário-Geral da ONU em Angola, Mussagy Jeichande, exprimiu satisfação com o
plano de paz, considerando-o "conciliatório". Os bispos católicos
receberam com agrado "a linguagem e o gesto benevolentes" do governo,
e a comunicação social independente também reagiu com agrado.
O problema da UNITA
A iniciativa parecia ter impulsionado as perspectivas de um
acordo. Contudo, havia que lidar com mais do que uma UNITA. Nominalmente, a
abordagem do governo era uma política dupla que envolvia a discussão dos
assuntos militares com os comandantes da UNITA no mato, e dos assuntos
políticos com a UNITA-Renovada, uma facção do movimento rebelde que há muito
reconhecia como sendo a UNITA legítima. Contudo, a UNITA-R, que era largamente
vista como um grupo de marionetas que tinha sido integrado no Governo de
Unidade e Reconciliação Nacional (GURN), tinha pouca legitimidade junto dos
membros da organização no mato, dos representantes da UNITA no estrangeiro e
dos outros deputados. Na prática, a ausência de uma UNITA coerente e unificada
representava uma oportunidade para o governo limitar qualquer acordo a um
acordo estritamente militar, com os seus congéneres militares, deixando os
assuntos políticos em suspenso.
Um comunicado da UNITA-R anunciou a criação de uma comissão para
a reunificação do partido, mas isto foi pouco mais do que uma postura.
Entretanto, havia uma séria divisão entre a Comissão de Gestão da UNITA no mato
e a sua ala no exterior. Enquanto o governo reconhecia a liderança militar da
UNITA como sua parceira de negociações, muitos no partido receavam que esta era
pouco mais do que prisioneira, tendo como única escolha assinar uma rendição
disfarçada de acordo de paz. 46 dos 70 deputados da UNITA emitiram uma
declaração apoiando a ala externa como o único organismo com legitimidade
suficiente para representar o movimento junto da ONU, para que se pudesse
concluir o processo de paz.
O público em geral também começou a exprimir reservas sobre a
natureza das negociações iminentes. Houve pedidos para que jornalistas e activistas
da sociedade civil, nacionais e estrangeiros, tivessem acesso às negociações e
aos membros da UNITA nelas envolvidas, ou, pelo menos, para que houvesse
observadores da ONU ou da Troika, para aumentar a credibilidade. Três dias após
o anúncio do plano de paz do governo, a Associação Cívica Angolana (ACA) pediu
numa carta aberta a elaboração de um plano que não fosse meramente um acordo
militar e para acomodar a UNITA, mas que lidasse com os problemas do país na
fase de transição para a democracia.
Um porta-voz governamental respondeu que a presença de
terceiros, tais como a igreja ou a ONU, seria confusa nessa fase, mas deixou
aberta a possibilidade de um envolvimento posterior. Falando pela Comissão de
Gestão da UNITA, o General Dachala apoiou esta posição.
Conversações
preliminares em Cassamba
Conversações preliminares entre as FAA e os generais da UNITA
começaram a 15 de Março na vila de Cassamba, na província do Moxico. Um jornal
revelou que o General das FAA "Implacável" teve uma reunião
exploratória de dois dias com Gato, na base da UNITA no Moxico, mas foi o
General Samuel Chiwale que liderou a delegação da UNITA nas conversações. Facto
importante, um antigo General da UNITA, que mudara de lado em 1993, e liderara
operações militares recentes, Geraldo Sachipenda Nunda (Chefe de Estado-Maior
Adjunto das FAA) liderou a delegação do governo nas conversações preliminares.
Alegadamente, ele foi capaz de estabelecer uma boa relação com os seus antigos
colegas.
O governou caracterizou a situação como sendo de resolução de
assuntos militares técnicos. Os dois lados concordaram que as FAA seriam
responsáveis pela organização e provisão de todos os meios logísticos e
técnicos necessários para as conversações, incluindo o transporte de delegados
da UNITA para o local. Foi acordado que a capital provincial, Luena, a cidade
com instalações do governo mais próxima do campo de batalha, seria um local
prático para acolher mais negociações. As perspectivas para a cessação
definitiva das hostilidades pareciam promissoras. O General Nunda das FAA e o
Chefe de Estado-Maior da UNITA, General Abreu "Kamorteiro", assinaram
um 'pré-acordo' de cessar-fogo em Cassamba, a 18 de Março. Continuaram a
aparecer relatos de combates em diversas partes do país, mas o governo
minimizou a sua importância, insistindo que se deviam apenas a 'falhas de
comunicação' com os combatentes no terreno.
Contudo, nesta altura, a ala militar da UNITA não tinha ainda
conseguido que os restantes elementos dispares da UNITA alinhassem. A ala
externa da UNITA não estava preparada para permanecer na penumbra. Um membro da
ala externa em Lisboa, Carlos Morgado, afirmou, pouco depois das conversações
de Cassamba terem começado, que estas eram "uma farsa. ... Que todo o
cenário... se destinava a ser vendido à comunidade internacional, como se um
acordo estivesse iminente." Ele disse que os representantes da UNITA nas
conversações eram prisioneiros e não compareceram voluntariamente às
conversações. Fontes da UNITA em Portugal informaram também que o representante
da UNITA em Paris, Isaías Samakuva, tinha sido eleito líder interino da UNITA.
Aparentemente, Samakuva deu um passo conciliador a 18 de Março,
quando apelou às igrejas, sociedade civil e partidos da oposição, que
garantissem uma paz digna e pediu ao governo uma clarificação sobre o estatuto
de Gato e de outros generais da UNITA que negociavam com as FAA. Após uma longa
conversa telefónica com Gato, Samakuva admitiu ter mais confiança na seriedade
das conversações, apesar de se ter queixado de que a UNITA não tinha meios de
comunicação entre os seus elementos no interior e no exterior.
Os elementos da organização sedeados na Europa acabaram por
emitir uma declaração exprimindo o seu apoio total à liderança do General Gato
e dando à equipa negociadora um mandato mais claro para chegar a um acordo. A
25 de Março, 55 dos 70 deputados sedeados em Luanda apoiaram uma declaração de
apoio total a Gato e à sua Comissão de Gestão – sendo os outros 15 seguidores
de Eugénio Manuvakola, da UNITA-Renovada.
Progressos no Luena
A segunda ronda de conversações começou a 20 de Março, no Luena.
Ambos os lados estavam confiantes de que a paz estava ao seu alcance.
Kamorteiro disse "muitos políticos usaram a mesma expressão, mas eu não
sou político, sou soldado, por isso quando falo de paz é a sério."
A equipa da UNITA incluía os principais generais e, desta vez,
era chefiada por Marcial Dachala, Secretário da Informação, e Alcides Sakala,
Secretário dos Assuntos Exteriores (ambos anteriormente dados como mortos).
Gato, mais uma vez, esteve ausente, mas mais tarde afirmou que a equipa
negociadora da UNITA esteve em contacto regular com ele na sua base algures no
Moxico, para conciliarem posições.
Durante as conversações, os serviços noticiosos do governo
relataram um ambiente muito bom entre os negociadores, com os membros da
delegação da UNITA em conversas livres e amigáveis com os seus parceiros das
FAA e com elementos do público. Kamorteiro foi, alegadamente, visto a guiar
abertamente o seu jipe pelas ruas de Luena, e os seus colegas foram vistos em
discotecas e clubes nocturnos da cidade.
A 23 de Março, os comandantes regionais militares das FAA
juntaram-se às conversações e, a 25 de Março, as conversações foram suspensas
para consultas. Ainda havia algum nervosismo oriundo do exterior. A 'missão no
exterior' pediu ao governo para alterar o local das conversações para um sítio
de acesso mais fácil para a imprensa e outros observadores (ou seja, Luanda), e
com maiores possibilidades de supervisão da ONU e da Troika, tal como previsto
no Protocolo de Lusaka.
As conversações foram dominadas pelos aspectos técnicos de um
cessar-fogo e pela definição detalhada de todos os aspectos relacionados com o
aquartelamento e desmobilização das forças da UNITA. Uma Comissão Militar Mista
(CMM) foi formada, tendo a ONU e a Troika com estatuto de observadores, e
também um grupo técnico consistindo de peritos militares das FAA e UNITA e de
representantes da ONU e Troika. De acordo com o seu estatuto de negociações
militares, os assuntos políticos, tais como o papel dos líderes da UNITA nas
estruturas do estado e do governo, assentos parlamentares vagos, e questões de
longo prazo como eleições e a constituição, foram deixadas para mais tarde.
O acordo militar foi assinado a 30 de Março, abrindo caminho
para a assinatura oficial a 4 de Abril. Esperava-se que Gato assinasse pela
UNITA, mas ele não compareceu. No início, foi dito aos jornalistas no Luena que
o helicóptero que o fora buscar não podia aterrar devido à chuva forte. Quando
o helicóptero chegou, transportava o antigo Comandante Geral da UNITA, General
Samuel Chiwale, que declarou que Gato "tinha demasiado trabalho" para
poder estar presente. Chiwale garantiu aos repórteres que o General Gato
estaria presente na cerimónia, em Luanda, na quinta-feira, 4 de Abril, que
seria testemunhada por Gambari e os embaixadores da Troika. Nesse dia, os dois
Comandantes-em-Chefe (Da Cruz Neto e Kamorteiro) assinaram o Memorando.
Afastando quaisquer receios de um descarte à Savimbi do acordo, Gato compareceu
e foi recebido por Dos Santos após a cerimónia.
A sensação de que o Memorando de Luena fora um pacto entre dois
partidos, excluindo outras forças políticas, permaneceu. Apesar do seu sucesso
em terminar com a guerra, e apesar das palavras amigáveis do plano de paz, as
outras forças políticas e sociais foram deixadas de fora. A 3 de Abril, na
véspera da cerimónia de assinatura, o Presidente Dos Santos fez um discurso ao
país sobre o perdão, a reconciliação nacional, a reconstrução, e os cuidados
com os desfavorecidos. Em resposta, o líder da Frente Nacional pela Libertação
de Angola (FNLA), Holden Roberto – o único líder sobrevivente dos três
movimentos de libertação originais – pediu que uma comissão preparasse "um
diálogo nacional sem exclusões" para garantir a transição pacífica para a
democracia e a reconstrução nacional.
As provisões acordadas para a amnistia aumentaram a sensação de
um pacto exclusivo de dois partidos. A UNITA e as FAA receberam do parlamento
uma amnistia total, aprovada unanimemente dias antes da assinatura. Foi a
primeira vez que uma proposta foi aprovada unanimemente pela Assembleia, mas a
reacção dos observadores foi menos entusiasta. A 11 de Abril, Gambari
encontrou-se com Gato e reiterou que a ONU não reconheceria a amnistia, uma vez
que os crimes de guerra teriam de ser julgados. A amnistia também foi
questionada por 63 partidos políticos mais pequenos numa carta ao Presidente.
Gato (e até Holden Roberto) consideraram a intervenção de Gambari indesejável e
potencialmente destabilizadora do ambiente optimista reinante.
A nova era
O Memorando de Luena marcou o fim da guerra. Seguiu-se um
período de maior contacto entre os dois partidos. A seguir à primeira reunião
da CMM, logo após a assinatura, Nunda informou que não houvera violações do
cessar-fogo. Membros da CMM e do grupo técnico foram apresentados à imprensa, e
o contingente da UNITA confirmou essas informações. A CMM acabou por ser
considerada inadequada para completar todas as tarefas, para além das de
natureza militar, e assim a Comissão Mista de Lusaka foi ressuscitada durante
alguns meses no final de 2002, sendo desactivada em Novembro, após o que a ONU
levantou as últimas sanções à UNITA.
Apesar da UNITA ter entrado nas conversações dividida, o caminho
para a sua reunificação enquanto partido político coerente estava a tornar-se
claro. A delegação da UNITA que chegou à capital para a assinatura formal
encontrou-se com o líder da UNITA-R, Manuvakola, que se comprometeu
publicamente a não interferir nas conversações, para, alegadamente, permitir
que "a UNITA representasse a UNITA". Nos meses seguintes a UNITA
encaminhou-se para a reunificação.
Apesar de alguns acharem que é uma afirmação duvidosa, no dia
anterior ao cessar-fogo ser assinado Gato avisou que "a guerra poderia ter
continuado". Não é possível saber se tinha razão, mas as razões para
negociar foram irresistíveis. Os acontecimentos posteriores a Fevereiro de 2002
podem ser vistos como a sequência lógica de uma campanha militar, em que ambos
os lados tinham algo a ganhar com a negociação e o fim da actividade militar. A
contenção do governo, não declarando abertamente a vitória, foi sensata. O
decurso dos acontecimentos pode ser interpretado como uma série de manobras
hábeis do governo do Movimento Popular pela Libertação de Angola (MPLA), que
conseguiu transmitir a ideia de uma conclusão conciliatória da guerra, sem
conceder qualquer poder.
A questão para Angola é saber o que poderia ter acontecido se o
processo tivesse sido definido em termos mais vastos – como uma oportunidade,
não só para acabar com as hostilidades militares de forma negociada, mas para
abrir o processo a uma renovação política mais vasta – através de consultas aos
partidos políticos não armados e à sociedade civil. Teriam estas fundações sido
melhores para uma democratização e reconciliação mais profundas, que pudessem
resolver com maior sucesso os problemas fundamentais de Angola? Dadas as
estruturas de poder, este tipo de abertura nunca foi uma hipótese real, mas
poderá ser Angola a perder por tal processo nunca ter sido levado a cabo.
Fonte: www.mpdaangola.com